"Vivemos em um mundo onde os jovens[...] crescem e se tornam adultos que, ao invés de refletir sobre os privilégios que tem, lutam pelos que não tem; que acham que uma petição online é mais que nada; que pensam que vão salvar o mundo pelo consumo responsável, comendo atum dolphin-free e palmito não-proveniente da Mata Atlântica. Ou seja, se tornam adultos que acham, sinceramente, do fundo do coração, que tudo gira em torno deles. Que o assunto é sempre eles." |
via Liberal, Libertario, Libertino em 23/01/11
Poucos conselhos são mais perversos e canalhas do que o popular "trate os outros como gostaria de ser tratado".
Não é verdade. Sabe por quê? Porque o outro é um outro. Porque ele teve outra vida, outras experiências. Porque ele tem outros traumas, outras necessidades. Basicamente, porque ele não é você; porque você não é, nem nunca vai ser, nem deve ser, a medida das coisas.
Se você se usa como parâmetro para qualquer coisa, já está errado. O outro deve ser tratado não como VOCÊ gostaria de ser tratado, mas como ELE merece e precisa ser tratado.
E você pergunta:
"mas, Alex, como vou saber como o outro merece e precisa ser tratado?"
Bem, para isso, o primeiro passo é sair de si mesmo e deixar de se usar de parâmetro normativo do comportamento humano. Essa é a parte fácil. Depois, abra bem os olhos e os ouvidos. Reconheça que existe um outro e que ele é bem diferente de você.
Então, conheça-o.
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A primeira coisa que aprendemos em vendas é a colocar sempre o foco no cliente. A chave para vender algo é resolver um problema ou necessidade do cliente - nem que para isso você precise criar a necessidade! Idealmente, suas frases devem girar sempre em torno do cliente: "o que posso fazer para colocá-LO em um carro novo hoje mesmo?", etc.
Os vendedores não fazem isso à toa. Funciona mesmo. Entretanto, nas últimas décadas, a técnica se espalhou. Basta ver a capa de qualquer revista: "20 maneiras de agradar SEU homem", "A recessão: como ela afeta o SEU emprego", "ENTENDA a crise em Ruanda", etc.
Esse último é especialmente traiçoeiro, por ser mais discreto. Entretanto, o efeito desse "entenda" é enorme, pois ele muda totalmente o eixo da discussão. Agora, o foco não é mais a crise em Ruanda, mas VOCÊ: o importante não é mais o sofrimento daquelas pessoas pretinhas, mas que VOCÊ entenda (superficialmente, claro) mais uma coisa para poder demonstrar aos amigos como está up-to-date com assuntos internacionais. Você, você, você. Não podemos nem mais falar sobre a crise em Ruanda sem arrastar, logo quem, VOCÊ para o meio da conversa.
A falácia, naturalmente, é que você não tem nada a ver com a crise em Ruanda.
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Falando em termos da classe média ocidental, vivemos em um mundo onde os jovens pais param tudo para virar escravos dos filhos: até Mozart na barriga da mãe escutam. Depois, crescem sendo os reizinhos da casa, mandando em empregados, vendo o mundo girar a sua volta. Na TV, mil anúncios voltados pra eles. Nos mercados, mil produtos feitos especialmente para fazer crianças pentelharem os pais para comprá-los. Nas escolas, os alunos agora também avaliam os professores e exigem um bom serviço em troca das suas mensalidades. Se alfabetizam lendo as mesmas notícias acima, sobre como isso ou aquilo os afeta, sempre dando a entender que a crise em Ruanda só existe para que a entendam.
Aí, crescem e se tornam adultos que, ao invés de refletir sobre os privilégios que tem, lutam pelos que não tem; que acham que uma petição online é mais que nada; que pensam que vão salvar o mundo pelo consumo responsável, comendo atum dolphin-free e palmito não-proveniente da Mata Atlântica.
Ou seja, se tornam adultos que acham, sinceramente, do fundo do coração, que tudo gira em torno deles. Que o assunto é sempre eles.
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A Ana Maria Gonçalves, autora de Um Defeito de Cor, escreveu um texto belíssimo sobre a polêmica em torno da obra de Monteiro Lobato. O que a Ana percebeu foi o seguinte: uma discussão que deveria ser sobre educação e educadores, dinâmica de sala de aula e cognição infantil, racismo e preconceito, acabava sempre caindo no eu, eu, eu. Enquanto, de um lado, professores estavam falando sobre os alunos e sua capacidade de aprendizado, e como poderiam se sentir alunos negros lendo livros sobre "pretas beiçudas", grande parte dos argumentos do outro lado eram coisas como:
"Monteiro Lobato foi um autores favoritos da MINHA infância", "EU li esses livros quando era criança e não SOU racista", etc.
Estavam pensando não nos efeitos do livro sobre as crianças que vão lê-lo no futuro (o que, afinal, é a questão em debate) mas sim defendendo a pureza de sua própria infância, como se dissessem
"se um livro que foi parte tão integrante e tão linda da minha vida é assim tão racista, que outras coisas pra mim tão naturais eu também vou ter que questionar?"
Em resposta a isso, Ana escreveu o texto brilhante cujo título já diz tudo: "Não É Sobre Você Que Deveríamos Falar".
Isso sempre acontece, não?
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Fala-se de racismo, e lá vem: "mas tenho amigos negros", "já namorei uma negra", "chamo meu amigo de Sombra e Grafite e ele nunca se importou".
Só que sua opinião, seus amigos, suas namoradas, tudo isso é irrelevante, entende? O racismo é maior que você, já existia antes, vai continuar existindo depois. Essa discussão tem que se dar no nível da história e da sociologia, dos indicadores econômicos e das injustiças contemporâneas. Quando muito, talvez, da experiência pessoal dos negros que sofrem a discriminação, mas mesmo isso é altamente subjetiva, pois o preconceito também é introjetado pela própria comunidade. Mas, com certeza, não da sua experiência pessoal.
O assunto não é você.
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Fala-se de aquecimento global, e lá vem: "mas esse ano teve uma tempestade de neve na minha cidade".
Só que as nevascas na sua cidade são incidentais e anedóticas, entende? Eu mesmo não tenho opinião sobre aquecimento global, mas ele vai ser provado ou desprovado através de gráficos climáticos globais sobre oscilações de temperatura ao longos dos séculos - e não pela quantidade de neve bloqueando seu carro no inverno passado.
O assunto não é você.
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Fala-se de feminismo, e lá vem: "essas feministas são muito histéricas, eu jamais me incomodaria da minha chefa passar a mão na minha bunda", "minha mãe foi dona-de-casa a vida inteira e muito feliz".
Mas você não é mulher, entende? As mulheres ganham menos, sofrem mais violência doméstica, são estupradas, morrem em abortos clandestinos - todos fenômenos com métricas facilmente encontráveis. A discussão tem que dar através desses números. As coisas que você faria ou sentiria se estivesse no lugar delas são irrelevantes, pois você não está e nem nunca estará no lugar delas.
O assunto não é você.
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Fala-se de direitos dos homossexuais, e lá vem: "não tenho nada contra mas acho que essas paradas gays me incomodam e só estigmatizam o movimento", "minha religião diz que é pecado", "se dois gays se beijarem em público, como vou explicar isso ao meu filho?"
Mas sua religião, sua opinião, seu incômodo, seu filho, isso tudo é irrelevante, entende? Outros cidadãos tem outras religiões, outras opiniões, outros filhos - e tem os mesmos direitos que você. Se as manifestações gays te incomodam, resolva o problema na terapia ou no templo. Você não saber como explicar ao seu filho um fenômeno humano ancestral como a homossexualidade não é justificativa para proibir alguém de viver seu amor.
O assunto não é você.
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Os exemplos poderiam continuar ad eternum. Aborto, descriminalização das drogas, pobreza. Deixe sua contribuição nos comentários.
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Uma amiga querida leu o rascunho desse texto e perguntou:
"é lindo isso, mas como você consegue ser assim?"
E eu tive que rir: mas quando foi que eu disse ou sugeri, em algum momento, por um segundo que fosse, que eu conseguia ser assim?!
Não estou me colocando acima desse comportamento. Bom narcisista que sou, escrevi o texto não pensando no outro, mas em mim mesmo e na minha própria vontade (tão vaidosa e tão narcisa) de ser a melhor pessoa possível. Pois eu também faço tudo isso. Escuto alguma coisa e já trago logo para mim, quero saber como afeta a minha vida, tenho sempre uma anedota pessoal para contribuir.
Não estou falando de cima, como o guru que conseguiu praticar um comportamento ilibado, pontificando aos infelizes lá embaixo que ainda não chegaram ao seu nível de iluminação: pelo contrário, estou falando a partir dos subterrâneos, do meio da multidão; estou falando justamente da briga diária que travo comigo mesmo, todo dia, o tempo todo.
Mas agora estou mais alerta. Tento não reincidir. Já consigo morder a língua antes de falar besteira. Convido vocês a tentarem fazer o mesmo. E, na próxima vez em que virem alguém se colocando em um assunto onde não deveria estar, deem o link desse texto.
Repitam comigo. O assunto não é você.
Ou melhor, o assunto não sou eu. O assunto não sou eu.
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compartilhado pelo reader - pela Professora Leticia de Goiania
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