I. DA OBSERVAÇÃO
Não te irrites, por mais que te fizerem...
Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio...
II. DO AMIGO
Olha! É como um vaso
De porcelana rara o teu amigo.
Nunca te sirvas dele...
Que perigo!
Quebrar-se-ia, acaso...
III. DO ESTILO
Fere de leve a frase...
E esquece...
Nada
Convém que se repita...
Só em linguagem amorosa agrada
A mesma coisa cem mil vezes dita.
IV. DA PREOCUPAÇÃO DE ESCREVER
Escrever...
Mas por quê?
Por vaidade, está visto...
Pura vaidade, escrever!
Pegar da pena...
Olhai que graça terá isto,
Sejá se sabe tudo o que se vai dizer!...
V. DAS BELAS FRASES
Frases felizes...
Frases encantadas...
Ó festa dos ouvidos!
Sempre há tolices muito bem ornadas...
Como há pacovios bem vestidos.
VI. DO CUIDADO DA FORMA
VI. DO CUIDADO DA FORMA
Teu verso, barro vil,
No teu casto retiro, amolga, enrija, pule...
Vê depois como brilha, entre os mais, o imbecil,
Arredondado e liso como um bule!
VII. DA VOLUPTUOSIDADE
Tudo, mesmo a velhice, mesmo a doença,
Tudo comporta o seu prazer...
E até o pobre moribundo pensa
Na maneira mais suave de morrer...
VIII. DOS MUNDOS
Deus criou este mundo.
O homem, todavia,
Entrou a desconfiar, cogitabundo...
Decerto não gostou lá muito do que via...
E foi logo inventando o outro mundo.
IX. DA INQUIETA ESPERANÇA
Bem sabes
Tu, Senhor, que o bem melhor é aquele
Que não passa, talvez, de um desejo ilusório.
Nunca me dês o Céu... quero é sonhar com ele
Na inquietação feliz do Purgatório...
X. DA VIDA ASCÉTICA
Não foge ao mundo o verdadeiro asceta,
Pois em si mesmo tem seu próprio asilo.
E em meio à humana turba, arrebatada e inquieta,
Só ele é simples e tranqüilo.
XI. DAS CORCUNDAS
XI. DAS CORCUNDAS
As costas de Polichinelo arrasas
Só porque fogem das comuns medidas?
Olha! quem sabe não serão as asas
De um Anjo, sob as vestes escondidas...
XII. DAS UTOPIAS
Se as coisas são inatingíveis.., ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A mágica presença das estrelas!
XIII. DO BELO
Nada, no mundo, é, por si mesmo, feio.
Inda a mais vil mulher, inda o mais triste poema,
Palpita sempre neles o divino anseio
Da beleza suprema...
XIV. DO MAL E DO BEM
Todos têm seu encanto: os santos e os corruptos.
Não há coisa, na vida, inteiramente má.
Tu dizes que a verdade produz frutos...
Já viste as flores que a mentira dá?
XV. DO MAU ESTILO
Todo o bem, todo o mal que eles te dizem, nada
Seria, se soubessem expressá-lo...
O ataque de uma borboleta agrada
XVI. DA DISCRETA ALEGRIA
Longe do mundo vão, goza o feliz minuto
Que arrebataste às horas distraídas.
Maior prazer não é roubar um fruto
Mas sim ir saboreá-lo às escondidas.
XVII. DA INDULGÊNCIA
Não perturbes a paz da tua vida,
Acolhe a todos igualmente bem.
A indulgência é a maneira mais polida
De desprezar alguém.
XVIII. DOS PESCADORES DE ALMAS
Se Deus, tal como Satanás, procura
As almas aliciar.., por que deixa ao Pecado
Esse caminho suave, essa fatal doçura
E faz do Bem um fruto amargo e indesejado?
XIX. DOS MILAGRES
O milagre não é dar vida ao corpo extinto,
Ou luz ao cego, ou eloqüência ao mudo...
Nem mudar água pura em vinho tinto...
Milagre é acreditarem nisso tudo!
XX. DOS SOFRIMENTOS QUOTIDIANOS
Tricas...
Nadinhas mil...
Ridículos extremos...
Enxame atroz que em torno à gente esvoaça.
E disto, e só por isto envelhecemos...
Nem todos podem ter uma grande desgraça!
XXI. DAS ILUSÕES
Meu saco de ilusões, bem cheio tive-o.
Com ele ia subindo a ladeira da vida.
E, no entretanto, após cada ilusão perdida...
XXII. DA BOA E DA MÁ FORTUNA
É sem razão, e é sem merecimento,
Que a gente a sorte maldiz:
Quanto a mim, sempre odiei o sofrimento,
Mas nunca soube ser feliz...
XXIII. DOS NOSSOS MALES
A nós nos bastem nossos próprios ais,
Que a ninguém sua cruz é pequenína.
Por pior que seja a situação da China,
Os nossos calos doem muito mais...
XXIV. DA INFIEL COMPANHEIRA
Como um cego, grita a gente:
"Felicidade, onde estás?"
Ou vai-nos andando à frente...
Ou ficou lá para trás...
XXV. DA PAZ INTERIOR
O sossego interior, se queres atingi-lo,
Não deixes coisa alguma incompleta ou adiada.
Não há nada que dê um sono mais tranqüilo
XXVI. DA MEDIOCRIDADE
Nossa alma incapaz e pequenína
Mais complacências que irrlsão merece.
Se ninguém é tão bom quanto imagina,
Também não é tão mau como parece.
XXVII. DO ESPÍRITO E DO CORPO
O espírito é variável como o vento,
Mais coerente é o corpo, e mais discreto...
Mudaste muita vez de pensamento,
Mas nunca de teu vinho predileto...
XXVIII. DO "HOMO SAPIENS"
E eis que, ante a infinita Criação,
O próprio Deus parou, desconcertado e mudo!
Num sorriso, inventou o homo sapiens, então,
Para que lhe explicasse aquilo tudo...
XXIX. DA ANÁLISE
Eis um problema!
E cada sábio nele aplica
As suas lentes abismais.
Mas quem com isso ganha é o problema, que fica
Sempre com um x a mais...
XXX. DO ETERNO MISTÉRIO
"Um outro mundo existe.., uma outra vida..."
Mas de que serve ires para lá?
Bem como aqui, tu'alma atônita e perdida
XXXI. DA POBRE ALMA
Como é que hás de poder, ó Alma, devassar
Essas da pura essência invisíveis paragens?
Tu que enfim não és mais do que um ansioso olhar!
Ó pobre Alma adoradora das Imagens...
XXXII. DAS VERDADES
A verdade mais nova, ela somente, existe!
Até que um dia, para os mais meninos,
Vai tornando esse aspecto, entre irrisório e triste,
Dos velhos figurinos...
XXXIII. DA BELEZA DAS ALMAS
Se é bela a alma em si, que importa o proceder?
Com Marco Antônio, rei da sedução,
Sentiriam os Anjos mais prazer
Do que na companhia de Catão...
XXXIV. DA PERFEIÇÃO DA VIDA
Por que prender a vida em conceitos e normas?
O Belo e o Feio.., o Bom e o Mau... Dor e Prazer...
Tudo, afinal, são formas
E não degraus do Ser!
XXXV. DA ETERNA PROCURA
Só o desejo inquieto, que não passa,
Faz o encanto da coisa desejada...
E terminamos desdenhando a caça
XXXVI. DA FALSIDADE
Foi tudo falso, o que ela disse?
Fecha os olhos e crê: a mentira é tão linda!
Nem ela sabe que fingir meiguice
É o mais certo sinal de que te ama ainda...
XXXVII. DA CONTRADIÇÃO
Se te contradisseste e acusam-te.., sorri.
Pois nada houve, em realidade.
Teu pensamento é que chegou, por si,
Ao outro pólo da Verdade...
XXXVIII. DO PRAZER
Quanto mais leve tanto mais sutil
O prazer que das coisas nos provém.
Escusado é beber todo um barril
Para saber que gosto o vinho tem.
XXXIX. DO PRANTO
Não tentes consolar o desgraçado
Que chora amargamente a sorte má.
Se o tirares por fim do seu estado,
Que outra consolação lhe restará?
XL. DO SABOR DAS COISAS
Por mais raro que seja, ou mais antigo,
Só um vinho é deveras excelente:
Aquele que tu bebes calmamente
Com o teu mais velho e silencioso amigo...
[Mario Quintana; Espelho Mágico, 1945]